terça-feira, 23 de junho de 2009

A Lua era eu. (Tico Sta Cruz)

"Hoje vi a lua espetada na antena de um prédio bem alto.
Lá estava ela grudada e olhando para mim com uma cor de sorvete de creme que chegou a me dar água na boca.
Parei a bicicleta e senti que uma brisa levemente fria continuava soprando,brisa de outono. Fechei os olhos e virei o rosto em direção ao cheiro do mar.
Voltei novamente o olhar para o céu e percebi seu semblante angustiado embora estivesse cintilante. Seus grandes cílios não escondiam um pedido velado de ajuda. Ela realmente estava presa na antena daquele edifício.
Olhei ao redor e não vi mais ninguém, ao voltar em sua direção ela sorriu como quem diz: "Me tira daqui?"
Sim, respondi sem imaginar como seria capaz de movê-la apenas com meus braços.
Caminhei solitariamente em direção as grades que cercavam o arranha céu. Um homem armado se aproximou e apontou sua lanterna em minha direção. "O que quer aqui?". Quero apenas ajudar. "Ajudar quem? Não precisamos de ajuda, esta é uma propriedade privada, mantenha distância e se tiver algo para fazer venha durante o dia quando os homens estiverem a postos em seus trabalhos". O senhor não entende? Se não entrar, amanhã não será dia.
Ele deu uma bela gargalhada e pediu que me afastasse pois deveria voltar para seu lugar de vigília e encerrou o assunto com uma ordem bem direta que veio como uma bolinha de papel na ponta do meu nariz. "Vai curtir sua onda em outro lugar rapaz, tenha uma boa noite". Guardou a pistola no coldre e voltou para sua cadeira de balanço. Fiquei tempo suficiente vendo aquele senhor com o rosto iluminado por uma pequena TV dando risadas e comendo um saco de pipocas daquelas que parecem isopor, mas que são de fato uma delícia.
Com a bicicleta dei uma volta na construção e notei que a lua continuava constrangida enganchada sem conseguir prosseguir seu caminho. Talvez tenha feito um movimento errado e se deixado agarrar na pontiaguda estrutura de metal que outrora dialoga com os raios que as nuvens despejam sem piedade quando estão de mau humor.
Disse para ter calma. Iria dar um jeito naquilo antes que o relógio completasse o percurso natural em direção ao amanhecer.
O prédio era todo envolvido por cercas elétricas. Ratos se esgueiravam pelo acostamento da rua embrenhados no lixo que não fora recolhido naquela noite. Havia de tudo que ratos e humanos precisam para se satisfazerem.
Um pouco mais a frente a garagem se abriu e um belo carro luxuoso e com vidros escuros transpassou a área protegida e antes que o portão se fechasse consegui entrar discretamente sem ser percebido pelo homem armado comedor de pipocas.
De fato aquele lugar era uma fortaleza insegura, se fui capaz de invadir sem ser notado, devo agradecer a Tv, a pipoca e ao dono daquele belo automóvel. Minha missão agora era descobrir um caminho até o andar mais alto para tentar então diante do real problema encontrar uma forma de retirar a bela lua de sua armadilha .
Dei alguns passos de forma a conseguir vê-la. Ela sorriu novamente e piscou os olhos em sinal de afeição por minha decisão. "Continue, por favor, preciso sair daqui". Sim, lhe disse. Tenha apenas um pouco de paciência, vou subir os trezentos andares e resgatá-la, tudo bem?
Quando afirmei isso não tinha absolutamente certeza alguma de que seria capaz. Porém fui.
Pelo basculante de um banheiro sujo e com dejetos esquecidos por outro alguém, consegui pisar no chão de mármore branco dos corredores que levavam até o elevador social. Como imaginei. Estavam todos desligados.
O homem continuava se divertindo com a TV e se empanturrando de pipoca. A Lua deveria estar esperando por mim.
Encontrei a entrada para as escadas e agora precisava vencer cada degrau daquele monstro de concreto e aço que me digeria cada lance dos andares percorridos.
Meu objetivo era chegar até a dona lua e para isso não ouvi qualquer incentivo contrário que pudesse brotar das conversas entre as vozes que dialogavam entre minhas orelhas. Diziam que era bobagem minha, impossível, foda-se, eu quero seguir, vou seguir e vou até onde quero ir.
Por volta do vigésimo quinto andar sentei um pouco para descansar. Minhas pernas estavam doloridas.
Não havia água, apenas o silêncio dos extintores de incêndio e das portas cor de planta que bloqueavam a entrada para aquele mundo de papéis e computadores que estavam pouco se lixando para o que acontecia no último andar. Ainda precisava subir duzentos e setenta e cinco compartimentos. Respirei fundo quando ouvi um barulho. Encostei na parede e percebi que eram pequenas asas em movimentos constantes. Um mosquito, pensei, ele veio em minha direção e pousou bem próximo ao meu ouvido. "Quer uma ajuda para chegar lá mais depressa?" Como? Respondi intrigado.
Posso te levar a um elevador que os funcionários desse prédio mantém ligado, o único problema é que ele só vai até o septuagésimo andar, de lá você retorna até as escadas e segue o resto."
É uma oportunidade pensei. Esse mosquito não me parece estranho e afinal de contas, conhece melhor que ninguém todos os espaços desse lugar estranho.
Sim, vou segui-lo. Por onde vamos?
"Sabe este chocolate que esta derretendo no seu bolso?"
Já havia até esquecido dele.
"Pois eu quero pra mim. É o meu preço."
Tudo bem, fique com ele.
"TODOS TEMOS UM PREÇO, nada é de graça bom amigo"
Coloquei o chocolate no corrimão onde ele fez um vôo ligeiro e ficou zanzando de um lado para o outro.
"Deixe-o aqui, vou te levar até onde precisa e depois volto para pegá-lo"
Subiu novamente em uma velocidade difícil de acompanhar e me conduziu até o Trigésimo andar.
"Pode abrir esta porta, não há ninguém ai dentro".
Empurrei com força o bloco de ferro e saímos numa espécie de sala de máquinas. Computadores para todos os lados.
"Aqui eles decidem o que farão de nossos destinos"
Imagino que sim, sussurrei.
"Compram e vendem almas e tem vista para o mar".
Por onde devo ir?
"Siga este corredor até o final, lá encontrará uma porta branca com aviso de permissão apenas para funcionários"
Entendi. Corri por entre as máquinas e sem querer tropecei num fio, derrubando um monitor que fez um estrondo em meio o silêncio daquele necrotério de robôs.
"Siga ele gritou com um barulho agudo em meus ouvidos"
Entrei pela porta branca, apertei o botão e em alguns minutos o elevador me abandonou no local indicado pelo mosquito.

Faltavam ainda alguns bons degraus que fui subindo ora com velocidade, ora com um pouco de cautela para manter energia suficiente até o meu objetivo final.
Por volta do penúltimo andar as luzes do prédio se apagaram.
A escuridão que tomou conta dos meus sentidos me deixou atordoado. Mantive a calma e pensei em como ela deveria estar ansiosa pela minha chegada. Quando minha pupilas se dilataram um pouco e consegui enxergar o suficiente para encontrar a porta do último pavimento, fui surpreendido pelo homem da TV comedor de pipocas.
Sua lanterna me cegou novamente e sua voz dura atingiu meus miolos.
"Você está encrencado"
Escute senhor, não subiria trezentos andares se não fosse por um motivo importante. Espero que entenda que a lua está presa na antena desse prédio, não sei exatamente o que é, e precisa de uma ajuda para que possa seguir seu caminho.
"Você só pode estar brincando comigo. Acredita mesmo que a lua está presa na antena deste prédio? De onde você veio garoto, de marte?"
Escute senhor, não precisa acreditar em mim, apenas abra esta porta e veja com seus próprios olhos.
"Para entrar neste recinto, me refiro ao local de onde você não deveria sequer ter passado dos primeiros andares, é necessário trabalhar para estes homens. Aqui estão autorizados somente funcionários e gente importante, não garotos bobalhões que pensam que podem sair quebrando regras para Rárárá, salvar a lua"
Entendo que exista todo um procedimento para que as pessoas façam parte desse pequeno mundo de máquinas e papéis, de ordens e ordenados. Mas caro senhor, entenda, eu vou tirar a lua desse sufoco, descer e desaparecer da sua vista.
"Olha aqui rapazinho, vou abrir esta porta, se não encontrar lua alguma, você estará muito encrencado"Quando ele empurrou a porta e ficamos de cara com toda a escuridão da noite, olhamos para a antena e não havia absolutamente nada além de fios e outras estruturas que regiam o maquinário do prédio.
"Não lhe disse, você achou realmente que a lua estaria aqui a lhe esperar?"
Mas...
"Tudo bem rapaz, estou de bom humor, pegue o elevador e desça até o primeiro andar junto comigo, vou fingir que nada disso aconteceu ok?"
Mas senhor...
"Veja a lua esta onde sempre esteve, talvez você tenha acreditado demais no que viu de longe".
Meu coração acelerou e senti um frio forte na espinha. Eu subi acreditando que poderia ajudar a lua a se desvencilhar de uma armadilha. Eu tinha certeza de que em seus olhos havia um chamado. Eu subi dezenas de degraus para chegar até aqui, abrir a porta e descobrir que tudo não passou de uma ilusão?
O homem colocou os braços sobre meu ombro e disse.
"Continue acreditando rapaz, apenas entenda que podemos nos enganar com relação algumas escolhas."
Não existe lua nenhuma presa nesse lugar?
"Olhe novamente para o céu"
Quando meus olhos cruzaram o horizonte, ela estava linda e distante, rumando para o fim da madrugada.
"Entende o que quero dizer?"
Não entendo, estou confuso com toda essa história.
"O que vale é o caminho e o que passou para chegar até aqui"
Mas isso não me basta!!!
"Então navegue até o fim do oceano e quem sabe não a encontra na linha do horizonte?"
Não compreendo ainda.
"Quem estava preso a estas antenas era você e não a lua. Precisou subir até o topo para entender que a mentira que nos cerca é mais normal do que se cre"
Acordei suando, peguei o jornal, liguei a TV e tudo continuava exatamente como quando fui dormir a duzentos anos atrás.

A Lua era eu.


Tico Sta Cruz

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